Nos últimos meses, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) tem enfrentado sucessivos escândalos ligados a descontos indevidos em aposentadorias, feitas por sindicatos e outras organizações similares. A dimensão dos prejuízos vai além do aspecto financeiro — atinge diretamente milhões de brasileiros que dependem desse suporte para sobreviver. A raiz do problema, no entanto, não está apenas na execução, mas sim na falha sistêmica de controle interno e na clara omissão do setor de compliance do INSS. O que deveria ser uma linha de defesa contra fraudes tornou-se um dos principais pontos cegos do sistema.
A falência do setor de compliance
O setor de compliance do INSS deveria ser o guardião da integridade do sistema de benefícios, garantindo que os órgãos públicos sigam normas e prevenindo irregularidades. No entanto, auditorias recentes revelaram uma falha catastrófica nesse sistema, permitindo que redes organizadas de fraude atuassem livremente. Uma das práticas mais prejudiciais identificadas foi a realização de descontos indevidos nos benefícios de aposentados e pensionistas por parte de sindicatos e entidades associativas, muitos ligados a autoridades. Relatórios da Controladoria-Geral da União (CGU) indicaram que, dos 1.273 beneficiários entrevistados, apenas 52 confirmaram filiação às entidades, e somente 31 autorizaram os descontos, sugerindo que 98% dos descontos foram realizados sem consentimento. (1)
A inabilidade dos aposentados e dos mais vulneráveis em identificar e se proteger desses atos ilícitos é alarmante. Muitos desconheciam completamente as entidades que realizavam os descontos, evidenciando uma exploração sistemática de sua vulnerabilidade. Entre as entidades envolvidas, destacam-se a Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), a Conafer (Confederação Nacional dos Agricultores Familiares e Empreendedores Familiares Rurais do Brasil) e a Caap (Caixa de Assistência de Aposentados e Pensionistas do INSS), que juntas responderam por 60% dos descontos nas aposentadorias em fevereiro de 2025. Apesar das evidências, essas entidades, supostamente, estão sendo poupadas de sanções mais severas pelo INSS, Senado, Câmara e governo central, refletindo uma conivência institucional que perpetua a impunidade. (2)
Os mais vulneráveis como principais vítimas
A ironia cruel de todo esse cenário é que os maiores prejudicados são exatamente aqueles que mais dependem do INSS: os idosos, os deficientes, os trabalhadores informais e as populações de baixa renda. Para muitos, a aposentadoria ou o benefício assistencial é a única fonte de sustento. Quando esses valores são desviados ou bloqueados por suspeita de fraude - muitas vezes sem provas claras -, o impacto é devastador.
O que vemos agora, além dos diversos casos mostram beneficiários legítimos passando meses sem receber qualquer valor enquanto tentam provar sua inocência frente a um sistema que se move lentamente, são os grandes fraudadores que com a complacência do orgão continuam operando com facilidade. A desigualdade no tratamento revela um sistema seletivo e ineficaz, onde o pobre é sempre o suspeito e o criminoso de colarinho branco permanece intocado.
Proteção política e a inação do Senado
A responsabilização pelos escândalos de fraude no INSS deveria envolver não apenas técnicos e servidores, mas também figuras políticas que, por ação ou omissão, contribuem para a perpetuação do problema. Nesse contexto, a procrastinação do presidente do Senado em pautar investigações ou acelerar votações de projetos de combate à corrupção previdenciária é um fator central.
Diversas comissões parlamentares de inquérito (CPIs e CPMIs) propostas para investigar o sistema de previdência foram enterradas ou esvaziadas por falta de apoio político. A demora deliberada em aprovar projetos que fortaleçam a fiscalização ou modernizem os sistemas de controle indica mais do que desinteresse — revela conivência e até tentativa de proteger aliados políticos e grupos de interesse que se beneficiam do atual estado de coisas.
O Senado, como casa revisora, deveria ser protagonista na proteção dos recursos públicos. No entanto, o silêncio cúmplice e a lentidão legislativa vêm permitindo que os desvios sigam seu curso. A falta de vontade política agrava ainda mais a percepção de impunidade. (3)
A MP 871/2019: uma tentativa de contenção afogada pela política
A Medida Provisória 871/2019 (4), editada ainda durante o governo Bolsonaro, foi um dos marcos na tentativa de frear fraudes no INSS. A MP instituiu o Programa Especial para Análise de Benefícios com Indícios de Irregularidade, reforçando a atuação de auditores e promovendo o cruzamento de dados para identificar fraudes. Além disso, estabeleceu prazos mais curtos para revisão de benefícios, modernizou o combate ao pagamento indevido e incentivou a digitalização de processos.
No entanto, após sua conversão em lei, as medidas começaram a ser desidratadas por pressões políticas e decisões judiciais. A derrubada de pontos essenciais da MP, bem como a falta de regulamentação e continuidade das ações, fragilizou os mecanismos de combate às irregularidades. Essa reversão criou uma sensação de "terra sem lei", encorajando a volta de esquemas de fraude que haviam sido momentaneamente inibidos.
A reação contra a MP partiu, em grande parte, de setores que alegavam violações de direitos e dificuldades burocráticas para populações carentes. Embora algumas críticas fossem legítimas, o desmonte da medida acabou beneficiando grupos que lucram com o descontrole do sistema. Em vez de aperfeiçoar a MP, preferiu-se abandoná-la - e o preço está sendo pago pelos aposentados e pela credibilidade das instituições.
Um problema que exige ação urgente
O que está em jogo não é apenas dinheiro, mas dignidade. A crise do compliance no INSS não pode mais ser tratada como uma simples questão administrativa. É uma emergência social e institucional que requer medidas enérgicas, transparentes e duradouras. É preciso reestruturar completamente o setor de fiscalização interna, investindo em tecnologia, inteligência artificial e auditoria externa.
Além disso, é necessário criar um sistema de responsabilização eficaz, que puna de forma exemplar tanto os fraudadores quanto os gestores que falham em seu dever de vigilância. A cultura de impunidade só será quebrada com investigações sérias, julgamentos rápidos e a exposição pública dos envolvidos.
O Congresso Nacional, especialmente o Senado, deve assumir seu papel de fiscalizador. A procrastinação legislativa e a blindagem de interesses precisam ser substituídas por uma atuação transparente, voltada ao interesse público. O combate à fraude previdenciária, e à corrupção arraigada nas instituições governamentais, deve ser uma prioridade nacional.
Concluindo
A irresponsabilidade do setor de compliance do INSS diante do desvio de recursos da aposentadoria é apenas a face visível de uma crise institucional mais profunda. Trata-se de um sistema que falha em proteger os mais vulneráveis enquanto serve de escudo para interesses corporativos, sindicais e políticos. Os prejuízos não se resumem ao erário — comprometem diretamente a dignidade de milhões de brasileiros, especialmente idosos, que veem seus direitos sendo sistematicamente violados.
Mais grave ainda é a omissão deliberada dos três principais pilares do poder republicano. Câmara dos Deputados, Senado Federal e governo central compartilham a responsabilidade por esse cenário vergonhoso. Ao invés de promoverem reformas estruturantes e fiscalizações rigorosas, preferem blindar entidades ligadas a suas bases eleitorais, proteger aliados envolvidos em esquemas de desvios e postergar ações legislativas essenciais. A procrastinação política não é neutra: ela favorece os fraudadores e sacrifica os cidadãos honestos.
É inaceitável que, em pleno século XXI, o Brasil conviva com um sistema previdenciário vulnerável, capturado por interesses espúrios e sem a devida proteção aos seus beneficiários mais frágeis. A tolerância institucional diante de práticas abusivas - como os descontos indevidos por entidades questionáveis - e a inércia diante de denúncias fundamentadas revelam uma crise de compromisso com o interesse público.
Romper com esse ciclo exige mais do que reformas técnicas: requer coragem política, responsabilidade institucional e respeito genuíno à população brasileira. Enquanto o Congresso e o Executivo não encararem esse problema como prioridade nacional, os desvios continuarão, os culpados permanecerão impunes, e os aposentados seguirão pagando a conta de um sistema que insiste em traí-los.
Ricardo Rios é CEO da RARios Consultoria, MBA, Encarregado de Dados e Analista de Privacidade Certificado, Consultor Especialista em LGPD, Segurança e Privacidade de Dados, Auditor Líder Certificado ISO/IEC27001:2022, Embaixador de Proteção e Privacidade de Dados par São Paulo, DPO e Coordenador Geral da Associação Nacional de Compliance - ANACO, Brasil
Mín. ° Máx. °
Mín. ° Máx. °
Mín. ° Máx. °